Meia noite eu conto.

Festa surpresa - Parte 1

No dia do seu aniversário, Joice começa a levantar suspeitas sobre uma possível traição de seu marido com sua melhor amiga após eles planejarem uma majestosa festa surpresa sem que ela desconfiasse de nada.

07/04/2024
Cotidiano

Fui obrigada a retomar um velho hábito para tentar colocar minhas ideias no eixo. A dias estou desnorteada sem saber o que é certo e o que é invenção da minha cabeça. Tudo começou por conta do meu aniversário, era uma quarta feira. Como sempre, pulei da cama já preocupada com os meus afazeres matinais. Pedro, meu marido, dormia tranquilamente enquanto eu tateava no escuro a gaveta do guarda roupa em busca de roupa.

Na ponta dos pés sai do quarto. Ainda estava com os olhos entorpecidos pela luz da manhã que cegou-me momentaneamente quando forcei a porta do banheiro que teimou em não abrir. - Ocupado - dizia uma voz sonolenta do outro lado.

Julinho. Está tudo bem?

Júlio, meu filho nunca acordava antes dos outros membros da casa. Mesmo quando era apenas um recém nascido tinha o hábito de acordar durante a madrugada - Sim mãe - Ele respondeu como quem tenta falar ao carregar muito peso. Eu respirei fundo e pulei essa etapa do meu cotidiano, fui me adiantando com as coisas do café da manhã.

Peguei o saco de pão e tirei várias fatias; às dispus em um prato limpo e grande ao passo que retirei a manteiga e o leite da geladeira. Por alguns segundos, senti que ainda não estava completamente acordada e fui me distraindo com uma conversa que eu podia ouvir do apartamento ao lado.

Mas ela não sabe de nada? Isso é muito estranho.

Falava uma voz feminina para um interlocutor que eu consegui distinguir por ser um homem mas não pude entender o que ele dizia. Já estava praticamente inclinada para a parede a fim de continuar a ouvir o diálogo quando fui surpreendida.

Feliz aniversário meu amor. - Meu marido tinha entrado na cozinha e já estava a poucos centímetros do meu rosto me abraçando e me dando um beijo molhado demais e levemente recheado por um suave bafo de sono.

Me limitei a sorrir e a retribuir o carinho, beijo de aniversário não se nega, nem mesmo com odores intimidadores. - Obrigado querido. - Respondi lhe dando mais uma bitoca. Calculei mal o tempo de abraço e me desvencilhei, talvez, cedo demais. Mas depois de quinze anos de casados e outros tantos de namoro, acredito que já passamos por muitos aniversários e festas para entender que a mensagem tinha sido recebida.

Voltei ao meu processo de criação do mais majestoso café da manhã que eu poderia fazer para a minha própria manhã de aniversário. Consistia em seis torradas, dois copos de leite para os meninos, café e iogurte natural com aveia para essa que escreve.

Continuei na produção enquanto Pedro ia descobrir se Júlio tinha sido tragado pela descarga. Eu tentei por mais alguns segundos entender o que meus vizinhos estavam falando, mas pelo que pude constatar pelas vozes, eles foram para outro cômodo mais distante da minha cozinha.

Quando um grito agudo me chamou abruptamente a atenção. Era Filipe, nosso caçula, que por algum motivo resolveu acordar a todos no prédio. Corri com o máximo de destreza que uma mulher beirando seus quarenta e cinco anos poderia ter. Ao chegar no recinto encontro um boquiaberto Júlio ainda com as calças arriadas e meu marido tentando entrar no quarto. Assim que eu dei de frente a porta, Filipe saiu correndo com uma cartolina amarela gritando.

Feliz aniversário mãe aaaaaah…

O meu amorzinho me abraçou furiosamente amassando um pouco o seu cartaz. Quando ele finalmente se desvencilhou de mim, pude ler em letras garrafais e pouco compreensivas: “Feliz Anversario mamae TE AMO”.

Obrigado batatinha, eu gostei muito do presente. Mas porque você estava gritando?

Perguntei tentando não demonstrar minha irritação com a gritaria. Dei-lhe um beijo em suas bochechas e ele respondeu:

Eu queria fazer surpresa e te acordar. Mas quando eu acordei você já não tava mais lá. Quer dizer, a senhora não tava…

Julinho ainda com as calças arriadas aproveitou o momento e rascunhou um abraço ao passo que balbuciava algumas palavras; eu prontamente respondi:

Vai lavar as mãos menino. - Ele deu meia volta e se enfiou novamente no banheiro.

Meu marido se limitou a dizer algumas palavras afáveis ao pequeno e eu prossegui para tentar terminar o café da manhã.

O dia não poderia ter seguido de forma mais tranquila, tomamos nosso café da manhã sem mais surpresas. Eu arrumei as crianças e antes que eu pudesse perceber eles já estavam apostos para pegar a perua que os levaria para a escola. Meu marido se aprontou para iniciar mais um dia de trabalho em casa enquanto eu fazia os últimos preparativos para sair.

Crianças encaminhadas, mochilas feitas, dei lhes um beijo de despedida ao deixá-los aos cuidados do nosso amigo carregador de pessoas pequenas.

No trajeto para o trabalho nada de particularmente especial ocorreu, já sou grande o suficiente para saber que nem todas as pessoas do mundo sabem do dia do meu aniversário. Ao chegar no escritório sou recebida por um tanto de cadeiras vazias e pouca comoção. Mas isso não me perturba, pois como haveria de ser diferente? é apenas mais um dia qualquer. Mas, talvez, eu quisesse que todos no mundo soubessem que aquele era o dia do meu nascimento.

Alguns colegas foram chegando com feições empolgadas de quarta-feira e foram se avolumando nas cadeiras ao redor. Alguns me deram sonoros “Bom dia! Feliz aniversário”. Outros foram mais ousados e se esforçaram para me dar um abraço. Alguns conseguiram se esquivar bem da tarefa social, pois talvez achassem muito estranho felicitar alguém do qual não nutrem muita simpatia.

Enquanto escrevia meu relato tentei por vezes fugir do tom de diário que ele acabou tomando. No entanto, devo dizer que acabei me afeiçoando a essa forma de explicar meu dia. Uma coisa de cada vez, de forma cronológica. Assim, caso alguém ache meu relato, conseguirá traçar de forma concisa o que me levou à loucura.

Consegui realizar minhas tarefas de escritório com maestria inegável, eu já estava a muito tempo fazendo aquilo para ser surpreendida de alguma forma. Tinha em minha mãos uma centena de currículos que deveriam ser barrados ou não, segundo alguns critérios. Eu divido tais critérios em dois tipos, os explícitos e os implícitos. O primeiro trata-se daqueles que constam na descrição da vaga. Coisas como ensino superior, idiomas, experiência fora do país etc.

Já o segundo tipo, as dos implícitos. Trata-se de algumas características que minha experiência dentro dessa empresa mostram evidentemente. Como alguns candidatos que acabam cometendo alguns erros ao exagerar em suas habilidades em outros idiomas e erram no português mais básico. Ou aqueles que por algum motivo insistem em se candidatar para vagas na diretoria sem nem ao menos possuir experiência na área.

Bom, no entanto, devo dizer que isso não importa. Após um pequeno devaneio e algumas candidaturas vetadas ou encaminhadas chegou a hora do almoço. Como de costume, o aniversariante pode escolher o restaurante e eu não poderia estar mais feliz, pois sabia exatamente qual deveria ser.

Eduarda minha colega e amiga, exatamente um minuto antes do horário se levantou bravamente lançando um sorriso iluminado na minha direção:

Então Joice, já sabe onde vamos comer hoje?

Ela falou em um tom um pouco mais alto do que eu gostaria. Mas obteve o efeito esperado ao notar que alguns de nossos colegas bateram em suas mesas ou soltaram gritinhos de excitação.

Ao soar dos tambores do proletário trabalhador de escritório; nos dirigimos em bando em direção ao restaurante. Não havia nada de especial em minha nele a não ser o pedaço bastante generoso de bolo que era servido gratuitamente ao aniversáriante do mês. Estávamos em onze pessoas, incluindo meus colegas mais próximos e meu chefe que estava particularmente sem paciência. Pude notar pela forma como se dirigia às outras pessoas e como não parava de balançar a perna nenhum minuto. Um detalhe que não me fugiu foi o fato de Eduarda passar um pouco mais de tempo do que o habitual digitando no celular.

Não cheguei a ficar incomodada, pois como eu já vinha observando, ela sempre parecia um tanto mais feliz que o de costume e isso provavelmente significava o surgimento de um novo interesse amoroso. O que era muito bom para ela, pois já fazia algum tempo que ela não aparecia com nenhum caso. Estranho mesmo é que ela teimava em não me revelar a identidade do tal interesse, dizendo que na realidade não existia caso algum.

Eu que a conhecia a pelo menos uns quinze anos sabia muito bem o que estava acontecendo, e não saberia dizer o motivo dela tentar esconder tal informação, logo de mim. Se fosse a Luzia do departamento pessoal eu até entenderia, mas esconder segredos da minha pessoa não fazia sentido algum. Cheguei a pensar que eu havia feito algo para suscitar alguma desconfiança entre nós.

Mal sabia eu que o seu novo caso estava mais próximo do que eu poderia imaginar.

Ganhei meu pedaço de bolo. Morango com gotas de chocolate e um creme que eu não saberia identificar. Meus caros colegas bateram palmas efusivas e me desejaram felicidades. Eduarda me deu um abraço apertado, desejou felicidades e me deu um beijo no rosto. No calor do momento não estranhei, mas no caminho de volta para o escritório me ocorreu que aquele afago teria sido um pouco formal demais para uma amiga de tão longa data.

Tentei lembrar de como foi minha interação no último aniversário dela e recordei como dediquei longos minutos para dizer como ela tinha sido importante para mim, na vida, na empresa. Rememorei o presente que havia lhe dado, nada de muito sofisticado, um par de brincos com pedras esverdeadas. Não me julgue por mesquinha, não costumo dar presentes pensando no que posso receber em troca. Mas a falta de reciprocidade me incomodou.

A tarde se desdobrou sem muitas emoções, finalizei minhas tarefas e estava na fila para pegar um copo de café quando meu telefone tocou. Em geral meu smartphone fica no modo silencioso para todas as chamadas, exceto para o meu marido e para a escola dos meninos. O que me suscitou a pensar, claro, que uma desgraça devia ter acontecido.

Alô - Atendi esperando ouvir a voz do meu marido, pois foi o contato que eu vi na tela do telefone.

Opa, dona Joice? - Não era ele. A voz era de um homem visivelmente mais velho. Um tanto esganiçada.

Sim ela mesma, com quem eu falo?

Aqui é o Aldair da emergência do Hospital Santa.. ahnn.. Marcelina. Seu marido, senhora, teve um mal estar repentino e desmaiou na rua. Eee, ele, bom. Está aqui na observação. A senhora pode vir aqui?

Demorei alguns segundos para entender o que estava acontecendo. Quem era aquele homem com voz vacilante que estava dizendo que meu marido tinha tido um treco. Por mais que eu me esforçasse para tentar prestar atenção e tomar alguma ação eu tinha sido invadida por um torpor que me paralisava de modo quase impossível de se desvencilhar.

Posso passar o endereço, senhora? - Aldair me tirou do transe tentando insistir que eu me mexesse.

Claro, vou anotar aqui - respondi, me dirigindo a minha mesa e procurando um bloco de notas. Percebi, surpresa, que minhas mãos tremiam ao segurar a caneta e pedir para o Aldair me passar o endereço.

Não percebi de imediato, mas Eduarda estava prostrada ao meu lado já havia algum tempo. Suas sobrancelhas arqueadas davam o tom de preocupação que seus olhos transmitiam.

Desliguei o telefone após me despedir previamente de Altair. Logo expliquei para minha amiga e colega o que estava acontecendo ao passo que ia encerrando minhas coisas na bolsa. Ela ouviu atentamente e se ofereceu para me levar até o hospital, alegando que eu estava muito nervosa para dirigir.

Desgraçado, fica comendo porcaria. Não faz exercício. Agora vai morrer.

Meus filhos vão ter que crescer sem pai, porque o pai deles não sabe agendar uma consulta de rotina. Inferno.

Foi tudo o que eu pude expressar no caminho até o Hospital. Não me ocorreu que eu nunca havia ouvido falar de tal hospital. E que o endereço era estranhamente em uma área demasiadamente longe de minha casa. Afinal, o que meu garboso marido estaria fazendo tão distante, ele trabalhava em casa.

Eduarda pouco fez para me acalmar, no máximo me interrompendo, entre um palavrão e outro para dizer que nós estávamos chegando.

Quando finalmente chegamos ao local. Eu mesmo não percebi, mas de fato era bastante estranho que um hospital não tivesse letreiro ou sinalização alguma. Nem mesmo sinal de outros pacientes. Estacionamos o carro em uma vaga qualquer e fomos caminhando lateralmente ao prédio que constava no endereço que Aldair tinha me passado.

Será que não paramos no lugar errado Eduarda? - Questionei minha colega tentando não contestar sua boa intenção.

Acho que é aqui mesmo, eu mesmo já vim nesse hospital a um tempo atrás. Deve ser por aqui.

Minha boca já estava seca e meus olhos marejados de fúria. Quando Eduarda me levou para uma porta lateral dizendo que era por ali. A porta deu em um corredor escuro e logo depois a um salão que estava igualmente escuro…

Quando um grito grave me chamou abruptamente a atenção.

Feliz aniversárioooooo!!

A luz cegou-me por um breve período. Quando consegui entender o que estava acontecendo, pude ver a pequena multidão que se aglomeravam próximo a portinhola. Em blocos de dois ou três eles vieram me felicitar.

Desgraça, Pedro.