Meia noite eu conto.

Estranho

Quando você se divide em dois e o que foi visto jamais poderá ficar oculto. Quando os olhares são como flechas.

07/04/2024
Cotidiano

Olhando no espelho certa vez. Fitei profundamente meus olhos, minha boca, sobrancelhas e até mesmo as estranhas orelhas. A grande questão que orbitava pesadamente sobre minhas têmporas parecia pisar no meu cérebro com força. Um certo tipo de medo fazia transbordar meu estômago, dava pra senti-lo até na boca.

Tudo isso acontecia na velocidade de um pensamento e com as ondas indo e voltando. Tudo que eu queria saber era o que fazia daquela pessoa que me observava de volta no espelho, eu.

Eram as orelhas? O nariz, talvez. A boca, que é igual a da minha mãe. Ou as sobrancelhas estranhas? Até o meu nome, parecia o de outra pessoa. Eu podia ser outra pessoa.

Tentei reviver as memórias de infância, como quem tenta se agarrar às margens de um rio revolto. Mas até mesmo as coisas doces pareciam distantes. As memórias de outra pessoa. Outro alguém com esse nome estranho, com esses olhos igualmente estranhos.

Parar de olhar para a coisa no espelho era o melhor a ser feito, mas tudo que eu tinha naquele momento era a dúvida. Era o pesado questionamento de vida. Tudo que eu podia observar era eu, ou melhor o estranho.

Achei prudente focar na memória dos meus pais, nada mais próximo do que as primeiras lembranças. Mas só conseguia ver outros dois desconhecidos. Talvez eles também não soubessem quem são.

Ao mergulhar nas profundas imensidão de dores que já pude sentir, por instantes me senti eu. Mas aos poucos toda aquela enchente secou e eu estava em pé na margem observando o estranho se afogar.

Quando senti que estava cruzando a barreira da existência, num flash, voltei ao espelho, onde o estranho me observava. Ele sorriu, senti que fiz o mesmo. Com olhos marejados deu as costas, abriu a porta e foi embora, me deixando sozinho.