Meia noite eu conto.

Baixa temporada - Parte 1

A estrada ia se montando pouco a pouco enquanto o carro da família Prado ia deslizando por entre suas curvas sinuosas. A noite densa e a falta de iluminação da estrada, exceto pela luz dos farois do carro, criavam uma atmosfera sonolenta.

07/04/2024
Terror

A estrada ia se montando pouco a pouco enquanto o carro da família Prado ia deslizando por entre suas curvas sinuosas. A noite densa e a falta de iluminação da estrada, exceto pela luz dos farois do carro, criavam uma atmosfera sonolenta. Diógenes estava atento aos movimentos que devia fazer e o quanto deveria frear para não perder o controle. Após quatro horas de viagem seus olhos já estavam cansados do vazio da estrada.

Marcela, sua esposa, estava ao seu lado, já tinha debruçado sua cabeça sobre o apoio do banco e parecia estar quase dormindo. O filho do casal era o mais desperto dos três, brincando com um aviãozinho de plástico que habilmente jogava de uma mão para a outra ao passo que reproduzia o barulho das hélices com a boca.

Vez ou outra, o garoto interrompia a brincadeira para questionar, “Já tamo chegando?” ou “vou fazer amigos lá?”. De início as questões do jovem foram prontamente respondidas por Marcela, mas aos poucos ela passou a ignorá-lo.

Marcela voltou a dar atenção ao pequeno Israel quando ele começou a falar sobre o seu amigo imaginário. Que voltava a figurar entre as brincadeiras do filho a algum tempo, mas não chegava a ser fonte de preocupação para ela ou seu marido. Inclusive ele dizia que era coisa de menino dessa idade, criar amigos para poder brincar.

“O meu amigo Ezequiel vai tá esperando a gente lá, sabia mamãe? ”, falou o menino enquanto prosseguia fazendo o pequeno aviãozinho saltar de uma mão para a outra. Marcela por não saber se seria uma boa ideia reforçar a ideia de um amigo imaginário no filho decidiu que seria melhor apenas dizer “sim, filho”. O que não impediu o pequeno de continuar “Ele é um pouco mais velho e tem um cachimbo, sabia?”

“Nós deveríamos ter vindo de dia. Essa estrada é muito perigosa à noite”. Falou Diógenes que aquela altura da vida não conseguia mais ficar muito tempo na mesma posição sem sentir dores que iam do quadril até as pernas. Por sua vez, Marcela achou de bom tom adotar a mesma estratégia que havia empregado com seu filho e disse “Sim, Diogenes”.

Mais um quarto de hora se seguiu até que a família pudesse ver o portal que dava boas vindas a cidade Vale das Viúvas. Um conhecido destino turístico no interior do estado, que em alta temporada é conhecido por abrigar centenas de famílias e jovens que se hospedam nos hoteis, hostels e pousadas da região. Era certo que aquela cidade já havia vivido tempos melhores quando era populado pela elite local que produzia café naquela região a muitos anos.

A Partir daquele ponto a estrada afunila e passa ser marcada pelos paralelepípedos, fazendo o carro trepidar. O hotel escolhido a dedo por Marcela ficava no ponto mais alto da cidade, assim eles ainda iriam precisar percorrer toda a extensão daquele município para chegar onde finalmente poderiam descansar. Por já ser tarde da noite e por se tratar de uma cidade pequena, todos os comércios já estavam fechados - não havia sinal de ninguém nas ruas e nem mesmo era possível encontrar qualquer luz vinda de uma sala ou quarto no interior das casas. Tudo parecia vazio.

“Mamãe a gente vai ficar ali?” - Israel falou ao apontar um prédio cor de limão que se aproximava no tombamento de uma curva. Suntuoso, o edifício se erguia em uma área que parecia ter sido um dia o auge daquele lugar, com casarões igualmente imponentes em seu entorno. Se não fosse por suas janelas quebradas e o tapume cobrindo a fachada, talvez um visitante desavisado pudesse acreditar que o lugar ainda estivesse funcionando.

“Não é ali meu amor. Este hotel não funciona mais. Quando a mamãe era da sua idade eu costumava vir aqui com sua avó. Passávamos as férias aqui. O quarto era sempre majestoso, parecia coisa de princesa.” - Israel balançou a cabeça enquanto deixava a boca entreaberta e respondeu - “E fechou por que?”.

“Ninguém mais que vem para essa cidade consegue pagar tanto luxo” - Falou Marcela dando o assunto por encerrado.

Passado o hotel duas ruas para cima finalmente a família chegou a sua estadia. O lugar possuía uma entrada lateral onde os hśpodes poderiam parar e retirar calmamente suas bagagens. Foi o que casal fez enquanto Israel tentava achar seu aviãozinho que havia caído no assoalho do carro segundos antes de Diógenes estacionar.

Após retirar as malas e recuperar o brinquedo perdido, os três se dirigiram para o lobby que para sua surpresa estava completamente vazio. “Estranho, eu avisei que chegaríamos esse horário.” - Falou Marcela que já previa a irritação de seu marido que por vezes reagia mal ao se deparar com imprevistos.

Infelizmente ela não poderia fazer nada pois seu esposo já estava batendo furiosamente na campainha de mesa que estava depositada próxima a uma máquina de escrever - que possivelmente servia apenas como item de decoração. Apesar dos olhares de reprovação de Marcela, ele não parou. Israel por sua vez continuava brincando com seu aviãozinho recuperado a muito custo.

Foram longos minutos até que Diógenes parou abruptamente. Seus olhos estavam fixados em um quadro que estava pendurado atrás do balcão da recepção. Por algum motivo a imagem o fez paralisar; na pintura era possível ver uma casa grande rodeada por um lindo jardim, nele haviam pessoas em roda, felizes e pulando. Era como uma lembrança maravilhosa de um passado que nunca existiu de fato.

Sua paralisia foi tamanha que ele não notou quando um homem surgiu detrás de uma portinhola com um sorriso discreto e braços abertos. Da cintura para cima o homem vestia um blazer formal, típico de um atendente de hotel caro; da cintura para baixo era um pouco diferente, pois o shorts estilo surfista não compunha bem o vestual.

“Boa noite pessoal. Sejam muito bem vindos. Aqui será a sua casa durante as vossas férias.” Diógenes saiu de seu torpor e quase caiu ao se sobressaltar pela visão do atendente. “Estamos aqui já tem dez minutos, achei que não tinha mais ninguém por aqui”.

Passado o mal estar da primeira interação, o anfitrião lhes inteirou sobre as regras do estabelecimento e mostrou a direção do quarto onde a família iria ficar. Não antes de recomendar alguns passeios como o da gruta e a cachoeira.

Uma vez postos em seus lugares, Diógenes se jogou na cama de casal, deixando a tarefa de colocar um pijama no pequeno Israel com sua esposa. Afinal ele havia dirigido por muito tempo e precisava dormir. Ele não viu a noite passar, nem sonho teve. Quando se deu conta de que estava com o sol batendo em seu rosto, a luz da manhã já estava invadindo uma janela entreaberta.

O quarto estava vazio, sem sinal de Marcela ou Israel. Diógenes sentou-se na beirada da cama, tentando acordar. Pegou qualquer roupa que conseguiu dentro da mala, passou água no rosto e saiu do quarto. Pensou que ainda poderia encontrar a mesa do café da manhã posta, mas quando desceu até o lobby do hotel, encontrou apenas uma garrafa térmica de café e alguns pães dispostos em uma bandeja prata.

Diógenes mordeu um pedaço de pão e saiu a procura de sua família. Se não fosse pelo pão e o café ou outros detalhes seria fácil de imaginar que o lugar estivesse abandonado. Cinco minutos andando pelas imediações e ele não havia encontrado ninguém.

Quando chegou na área da piscina, encontrou absorta em um livro aberto, Marcela que parecia já ter aproveitado tudo que aquela estadia podia oferecer e agora estava procurando descansar sem preocupação. “Cadê o Israel, Marcela?” - Falou Diogenes sem se preocupar em esconder sua impaciência com o que ele achava ser falta de consideração de sua esposa, ao não acordá-lo para o café da manhã.

“Bom dia querido. Dormiu bem? Está brincando no parquinho ou na sala de TV. E você onde estava?” - Diógenes bufou como um boi que não vê como pular uma cerca particularmente espinhenta. “E não me acordou porque?” - Marcela, que a essa altura já sabia muito bem como desviar das lamúrias de seu esposo, se permitiu voltar os olhos para o seu livro, pontuando apenas: “Vai lá ver o menino, depois se quiser, pode voltar aqui para tomar um sol”.

Diógenes saiu batendo os pés e balbuciando algo indecifrável, andou alguns metros até chegar no tal parquinho. Israel estava descendo o escorregador e ao seu lado um homem estava se apoiando no batente do brinquedo. Ao se aproximar, seu filho abriu um largo sorriso e disse: “Papai, você acordou. Até que enfim. Vem conhecer meu amigo. Que eu tinha falado antes, o Ezequiel.”

O homem tinha aparência atarracada, um rosto já cansado pelo sol e cabelos brancos e ralos. Seus lábios grossos estavam comprimidos, mas era possível notar uma mancha escura, algo que poderia ser um cachimbo.

“Prazer, Ezequiel ao seu dispor meu senhor. O seu menino é uma figura” - Falou Ezequiel estendendo uma mão grossa e pesada na direção de Diógenes. Um tanto sem jeito Diógenes comprimentou o homem e tentou encaminhar o filho para voltar para junto de Marcela. A princípio o menino resistiu, mas logo decidiu que era melhor obedecer ao pai.

Chegando na região da piscina, Marcela mais uma vez levantou as sobrancelhas de seu livro para espiar seu marido que estava visivelmente nervoso. “Marcela, você viu que estranho? Realmente tem um funcionário do hotel que se chama Ezequiel.” - Ela respirou fundo e continuou sua leitura, não queria perder o fio do que estava acontecendo e odiava ser interrompida. Mas Diógenes continuou, “Não acha estranho?” - se ele tivesse a mesma idade que seu filho, provavelmente estaria chorando e gritando por atenção, mas como era um homem crescido precisava se dispor de outros artifícios, como bater os pés copiosamente. “Assim meu amor, vi ele mais cedo. Coincidência né, acontece, sabia? Agora, se você puder sentar um pouco, quem sabe aproveitar um pouco as férias”.